quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O Nariz

Um dia Azora voltou de um passeio muito encolerizada e deixando escapar grandes reclamações.
_ Que tens, minha querida esposa? Quem pode te deixar assim fora de ti mesma? - perguntou Zadig.
_ Ah! Ficarias como eu - respondeu - se visses o espetáculo de que acabo de ser testemunha. Fui confortar a jovem viúva Cosru, que há dois dias eregiu um túmulo para sei jovem esposo, junto do riacho que banha essas pradarias. Em sua dor, prometeu aos deuses que ficaria junto do túmulo enquanto as águas desse riacho corressem ao lado.
_ Pois bem! Disse Zadig, aí está uma mulher honrada que amava verdadeiramente seu marido!
_ Ah! Replicou Azora, se soubesses em que se ocupava quando fui visitá-la!
_ Em que, minha bela Azora?
_ Estava mandando desviar o riacho.
Azora se derramou em invectivas tão longas, explodiu em recriminações tão violentas, que essa ostentação da virtude não agradou a Zadig.
Ele tinha uma amigo chamado Cador que era um desses jovens quem sua mulher atribuía mais probidade e mérito que aos outros: fez dele seu confidente e se assegurou, como podiam de sua fidelidade, dando-lhe um valioso presente.
Azora, que passara dois dias no campo em casa de uma amiga, voltou para casa no terceiro dia. Criados em pranto lhe anunciaram que o marido morrera subitamente naquela noite e que não tinha coragem de levar-lhe essa infausta notícia, mas que acabavam de seputá-lo no túmulo de seus pais, no fundo do quintal. Ela chorou, arrancou os cabelos e jurou morrer. À noite, Cador pediu permissão pra lhe falar e os dois choraram.
No dia seguinte choraram menos e almoçaram juntos. Cador confessou que o amigo lhe deixara a maior parte de sua fortuna e deu a entender que a maior aventura, para ele, seria compartilhá-la junto com ela. A mulher chorou, se irritou e se acalmou; o jantar foi mais demorado que o almoço; falaram-se com mais confiança. Azora fez o elogio do defunto, mas confessou que Zadig tinha alguns defeitos dos quais Cador estava isento.
No meio do jantar, Cador se queixou de uma dor violenta no baço; a jovem viúva, inquieta e solícita, mandou trazer todas as essências com que se perfumava, a fim de ver se alguma não haveria de servir para a dor no baço; lamentou muito que o grande Hermes não estivesse mais em Babilônia; dignou-se até tocar o lado onde Cador sentia dores tão agudas.
_ Estás sujeito seguidamente aos ataques dessa cruel doença? - perguntou ela, cheia de compaixão.
_ Leva-me às vezes a beira do túmulo - respondeu Cador. Só há um remédio que me dá alívio: é aplicar no local o nariz de um homam falecido na véspera.
_ Estranho remédio! Disse Azora.
_ Não mais estranho - respondeu - que os saquinhos do senhor Arnou* contra a apoplexia. (*Havia nessa época, um habitante de Babilônia, chamado Arnou, que curava e prevenia todos os ataques de apoplexia com um saquinho pendurado ao pescoço.)
A esta razão, juntamente com os extraordinários méritos do jovem, a mulher finalmente se convenceu.
"Em todo caso - disse ela - quando meu marido, na ponte de Tchinavar, passar do mundo de ontem para o mundo de amanhã, será que o anjo Asrael deixará de lhe dar passagem, só porque seu nariz vai ser um pouco menos longo na segunda vida do que na primeira?"
Tomou, pois, uma navalha, foi ao túmulo do esposo, regou-o de lágrimas e se aproximou para cortar o nariz de Zadig, que encontrou estendido na tumba. Zadig se ergueu, defendendo o nariz com uma das mãos e detendo a navalha com a outra.
_ Senhora, disse ele, não xingues mais tanto assim a viúva Cosru; o projeto de me cortar o nariz é igualzinho àquele de desviar o riacho.
*Texto retirado do livro "Zadig ou o Destino" de Voltaire. (Col. Grandes Obras do Pensamento Universal - 29, Editora Escala)

Nenhum comentário: